TER
OU NÃO TER SAPATO
Gabriel
Paolini Carvalheiro
Quem
não tem sapato é alguém que resolveu que a vida havia acabado. Sapato é
difícil, embora empolgante de se conseguir. Só tem sapato quem achou pelo menos
três marcas que tem o número perfeito, com a forma perfeita, que nem fica
apertando o dedão, nem que fica sobrando espaço entre o peito do pé e a língua,
e muito menos aquele que tem os buracos do cordão sem revestimento de metal.
Sandália, meia, chinelo, pantufa, Havaianas, papete, tamanco, salto alto,
médio, baixo ou até mesmo um tênis de corrida é fácil. Pra começar meia mancha
super fácil, tem dez tamanhos por peça, é impossível não caber, a menos que
você seja uma chinesa no norte da Europa. E ainda por cima sandália ou chinelo
são, telas de mosquito rasgadas, óculos de natação sem borracha, celular touch
sem película nem capinha, saco de lixo fino, passarela sem guarda-corpos, o
peito do pé fica exposto ao público, à vista de um lince, aos ouvidos de um
cego. E não há coisa melhor no mundo para escondê-lo do que o sapato.
Não
tem sapato quem nunca se sentiu satisfeito ao chegar em casa depois de um
temporal, tirar o sapato e ver o pé seco, impecável, limpo ao mesmo tempo que
seu salvador, o escolhido para este trabalho, é colocado em sua banheira espumada
de detergente, para descansar e se preparar para sua nova aventura, a entrega
do trabalho. Não tem sapato quem não se sente protegido, ao lado de um
escudeiro quando enfrenta a caminhada até a padaria, com o mato raspando no
cordão, as bostas do cachorro do vizinho passando a dois milímetros do sapato e
o mendigo, descalço do seu lado pegando profundamente um resfriado. Quem não
tem sapato é quem nunca teve nojo de sentar de perna de índio, ou em cima do
calcanhar porque nosso muro estava pichado. Quem não tem sapato não sabe como é
bom saber que a porta está bem trancada, a sete chaves. Quem não tem sapatos só
encosta a porta. Quem não tem sapato não sabe qual é a sensação de lembrar a
senha do cofre depois de um longo tempo tentando. Quem não tem sapato, mora em
casa, uma casa de muro baixo, sem sistema de segurança e em São Paulo. Quem
pinta a unha do pé é tudo isso, e ainda com joias penduradas na porta. Quem
nunca teve sapato não sabe como é importante pagar o condomínio com empresa de
segurança, e que quando não pagamos ficamos inseguros e medrosos sem nosso
Dumbledore.
Se
você ainda não tem sapato é porque não sentiu o gosto pelo paraíso, vive
entregado as propagandas da Quechua, da Nike, da Vibe ou da Quick. Saia do
piloto automático, entre na turbulência e quando saíres verás tu estarás
ouvindo Mozart, ou Milton Nascimento, não mais funk carioca ou o pop da Katy
Perry.